Rankings de felicidade colocam países nórdicos no topo, mas critérios das avaliações são questionáveis

Países da Escandinávia aparecem com frequência entre os mais felizes do mundo; no entanto, métodos usados para definir as percepções de felicidade são muito subjetivos.

Finlandia (Unsplash)Países como Finlândia, Dinamarca e Islândia são os mais felizes do mundo. (Foto: Unsplash)

Desde 2018 uma manchete se repete no noticiário mundial: a Finlândia é apontada como o país mais feliz do mundo no ranking World Happiness Report, que é associado à Organização das Nações Unidas (ONU). Além da Finlândia, nas primeiras posições aparecem sempre outros países nórdicos, como Dinamarca e Islândia. Mas, afinal, o que faz esses lugares terem índices tão altos de felicidade, ano após ano? O segredo, aparentemente, está nos critérios usados pelo relatório.

O World Happiness Report usa dados de seis variáveis para elaborar o ranking anual de felicidade: PIB (Produto Interno Bruto) per capita, apoio social, expectativa de vida saudável, liberdade, generosidade e corrupção. O índice é calculado com base em avaliações individuais de 1.000 moradores de cada país para cada um desses seis quesitos, por meio de entrevistas feitas pela consultoria Gallup World Poll.

Deste modo, os primeiros colocados na lista são, com frequência, países ricos onde os seis indicadores são vistos de maneira majoritariamente positiva pela população. No entanto, o uso desta métrica para estabelecer uma definição mundial de felicidade é questionado por especialistas e por moradores dos países que aparecem nas primeiras posições.

A estudante Noora Ojala, de 26 anos, é natural de Helsinque, capital da Finlândia, e conta que os rankings que colocam o país em primeiro lugar já viraram praticamente uma piada por lá. “Normalmente, quando ouvimos sobre esses rankings, apenas damos risada. Eles viraram quase uma piada para nós. Acho que a palavra felicidade pode ser muito enganosa neste contexto”, diz Ojala.

“Claro que nossas vidas são confortáveis graças à nossa liberdade, apoio social, educação e saúde, mas essas não são as únicas chaves para a felicidade. A Finlândia é um ótimo país para se viver, mas essas classificações não dizem nada sobre nós como indivíduos”, completa a jovem.

 

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Para Alfredo Maluf Neto, psiquiatra do Núcleo de Medicina Psicossomática do Hospital Israelita Albert Einstein, é importante destacar que não existe um consenso médico sobre o que é, afinal, a felicidade.

Biologicamente, a sensação está ligada a uma série de hormônios naturais como serotonina, dopamina, ocitocina e endorfina. No entanto, além da explicação biológica, a felicidade também pode ser analisada sob um olhar social.

“Do ponto de vista médico, a definição de felicidade é muito ligada ao que a OMS - Organização Mundial da Saúde - determina, sobre bem-estar físico, saúde mental, bem-estar social. Do ponto de vista neurobiológico, ou seja, no cérebro, a felicidade se organiza no contexto de várias funções diferentes. Dentro dessas funções existem, por exemplo, hormônios que regulam o humor”, diz Maluf Neto, do Einstein.

O pesquisador Arto Salonen, professor na University of Eastern Finland e autor de diversos estudos sobre bem-estar na sociedade finlandesa, explica que um dos fatores que pode influenciar na percepção de felicidade dos indivíduos é separar os desejos das necessidades, especialmente quando o assunto é finanças.

Este pode ser um dos motivos pelo qual os finlandeses aparecem no topo dos rankings: para eles, o importante não é aumentar a renda, mas ter a segurança de que sua renda é suficiente para cobrir suas necessidades.

“De acordo com nossos estudos, não houve diferenças de felicidade estatisticamente significativas entre finlandeses de diferentes grupos de renda. Mas o interessante é que o sucesso financeiro percebido explica a felicidade. Os finlandeses conseguem separar suas necessidades e desejos relativamente bem”, explica. “Em termos de felicidade, a separação das necessidades reais e dos desejos infinitos é mais importante do que o aumento contínuo da renda. Isso se refere a um velho ditado finlandês: quando você sabe o que é suficiente, você fica feliz”, completa Salonen.

O especialista afirma que a transição para um estilo de vida mais sustentável e ecológico também pode estar ligada a uma percepção maior de felicidade, segundo estudos conduzidos por sua equipe na University of Eastern Finland.

“Nossa pesquisa mostra que estilos de vida sustentáveis podem aumentar a felicidade dos cidadãos, em especial os níveis de satisfação com a vida e de senso de dignidade na Finlândia. Os finlandeses que já começaram a mudar seus estilos de vida para uma direção mais sustentável estão mais satisfeitos consigo mesmos do que aqueles que continuam vivendo como sempre viveram”, explica Salonen.

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Pressão pela felicidade

Moradora do país que aparece em segundo lugar no ranking World Happiness Report de 2023, a estudante dinamarquesa Michelle Kisak Baumhauer, de 24 anos, acredita que é mais fácil se sentir feliz em um lugar onde as condições de vida trazem maior segurança e menos estresse.

Para ela, as boas classificações da Dinamarca são resultado de um sistema de bem-estar social que gera menos preocupações para os cidadãos. “Não precisamos nos preocupar se vamos ter como pagar a faculdade, porque ela é pública. Não precisamos nos preocupar se podem pagar consultas médicas, porque elas também são para todos. Temos ajuda do governo todos os meses para os estudantes que estão na faculdade. Isso tira um pouco do estresse”, avalia a estudante.

No entanto, para outros moradores de países nórdicos, essa segurança social também pode se refletir em uma pressão individual para ser bem-sucedido e, em suma, estar sempre satisfeito e feliz.

“Às vezes, sinto que as classificações aumentam a pressão para me sentir feliz. Sabemos que temos muita sorte de morar em um país seguro e onde somos muito bem tratados. Também somos gratos porque a maioria de nós vive uma vida muito confortável, mas essas coisas às vezes podem nos fazer sentir quase que culpados por nossa própria infelicidade”, diz a estudante Noora Ojala, da Finlândia.

“Temos toda a liberdade de ser quem quisermos e nos expressarmos livremente. Todo mundo tem as mesmas possibilidades de obter uma boa educação e sucesso na vida, mas, quando você não consegue e sente que falhou na vida, só pode culpar a si mesmo”, completa.

A jovem ainda faz referência aos indicadores de suicídio do país, que estão acima da média da Europa. Em 2019, o índice na Finlândia foi de 15 mortes por suicídio a cada 100 mil habitantes, enquanto a média da União Europeia foi de 10 casos a cada 100 mil.

“Já ouvi pessoas brincando que a única razão pela qual somos o país mais feliz do mundo é porque todos os deprimidos já se mataram”, conta Ojala.

A impressão de que os rankings não refletem a realidade individual dos habitantes se repete em outros países nórdicos. A estudante Írena Thormarsdóttir, de 24 anos, é natural da Islândia, terceiro colocado no ranking da ONU de 2023. Para ela, o senso de identidade e união nacional, que são muito presentes no país, podem ajudar a explicar as boas classificações. Apesar disso, ela acredita que os rankings não refletem a opinião da maioria dos islandeses.

“Perguntei a alguns de meus amigos e eles não têm ideia de porque estamos sempre tão bem classificados. O tempo é quase sempre ruim, e os invernos escuros não ajudam, então acredito que esses rankings podem estar simplesmente focando nas perguntas certas que fazem o país parecer mais feliz do que é”, avalia a jovem.

Diferenças culturais

Como os critérios para definir as percepções de felicidade são subjetivos, o psiquiatra Alfredo Maluf alerta que não faz sentido tentar reproduzir elementos da cultura nórdica no Brasil para tentar atingir melhores índices, como os que são registrados nos países da Escandinávia.

“Essa sensação de felicidade também é influenciada pela cultura, a gente sempre tem o fator social e ambiental presente. Esses países que são os melhores do ranking têm muita estabilidade, segurança, bem-estar econômico, pouca desigualdade”, lembra Maluf.

“No entanto, nós temos várias diferenças culturais que não podem ser esquecidas: somos de um país latino-americano, mais afetuoso, mais caloroso, e isso também tem a ver com as nossas percepções do que é felicidade, e como nós avaliamos os critérios que fazem parte de cada ranking”, explica.

Para ele, a busca pela felicidade não deve passar pela cópia de modelos do exterior, mas pela valorização da própria identidade nacional.

“Eu acredito que quanto mais as pessoas se distanciam da própria cultura, mais infelizes elas se tornam. Neste sentido, tentar copiar os nórdicos não funcionaria. O segredo pode ser mais abraçar a nossa própria identidade, do que tentar copiar a dos outros”, diz Maluf Neto.

No entanto, o médico lembra que, individualmente, a adoção de alguns hábitos tem um grande poder de influenciar a percepção de felicidade.

“O que a gente pode dizer é que boa alimentação, praticar atividade física, dormir bem, são coisas básicas que a gente precisa valorizar mais nestas buscas pela felicidade, junto aos momentos de socialização com a família e amigos, e uma relação saudável com trabalho”, explica.

Ainda que a química da felicidade tenha ligação com hormônios neurotransmissores que atuam no cérebro, a percepção mais contínua de felicidade pode ser estimulada com um acúmulo dessas experiências de vida saudável.

“Essa sensação imediata de prazer está mais ligada aos hormônios, do ponto de vista biológico. Mas, se a pessoa tem pequenos prazeres, ela tem um acúmulo de experiências boas, e isso também traz essa percepção de felicidade. É um ciclo”, diz o psiquiatra.