Mudanças em regras tributárias nos EUA afetam Brasil

Operações entre companhias localizadas nos dois países estão sujeitas a bitributação.

statue-of-liberty-267948_1920Operações entre companhias localizadas nos dois países estão sujeitas a bitributação. (Foto: Pixabay)

Uma mudança nas regras tributárias americanas pode gerar aumento na carga tributária de negócios entre o Brasil e os Estados Unidos. Com a aprovação da TD 9959, norma do Departamento do Tesouro Americano, no fim de dezembro do ano passado, empresas americanas com operações no Brasil não podem mais aproveitar créditos tributários decorrentes de impostos retidos ou pagos no Brasil, e estão sujeitas a dupla tributação.  

De acordo com as novas regras, só será permitido o aproveitamento de crédito de tributo pago em outros países, caso este outro país tenha legislação similar a dos Estados Unidos. "A regulamentação americana exige que a legislação do exterior referente à tributação da renda guarde semelhança com a adotada nos EUA.  Por exemplo, exige que tenha regras de preço de transferência que sigam os parâmetros internacionais chamados arm's length principle. Nossa legislação não segue esses princípios", explica Gustavo Carmona, sócio-líder de tributação internacional da EY.  

A nova regulamentação prevê uma dispensa do cumprimento destes requisitos quando a jurisdição tiver firmado com os EUA um acordo para evitar a dupla tributação - o que não ocorre com o Brasil. Segundo Carmona, para haver um acordo a fim de evitar a bitributação, é necessário ampla negociação entre os governos americano e brasileiro, alinhamento acerca de pontos controversos, e posteriormente aprovação pelo legislativo e executivo de ambos os países. 

As regras de preço de transferência, ou transfer price, são focadas na determinação do preço, para fins tributários, de transações entre partes relacionadas residentes em jurisdições distintas. O objetivo é evitar a evasão fiscal decorrente de eventual transferência artificial de lucros entre partes relacionadas. 

Em entrevista à Agência EY, Gustavo Carmona explica a decisão do Departamento de Tesouro Americano e os impactos para os investimentos no Brasil. 

A TD 9959 foi aprovada no fim de dezembro do ano passado. Do que ela trata? 

Foi uma revisão de regras de creditamento de tributos pagos no exterior. É uma legislação doméstica que permite crédito de impostos pagos no exterior para evitar tributação jurídica ou econômica. Uma medida unilateral dos Estados Unidos. As regras ficaram mais restritivas. Muito disso decorre de uma reação dos Estados Unidos a certas jurisdições que, recentemente, vêm tentando tributar mais pesadamente operações de comércio eletrônico ou da indústria de tecnologia por meio da imposição do que chamamos de “Digital Service Taxes”. Mas, por fim, acabaram por adotar uma legislação mais amplamente restritiva, alcançando a legislação do Brasil de forma mais profunda.  

Quais são os impactos imediatos? 

Inicialmente, pensou-se que o impacto imediato seria na possibilidade de as empresas norte-americanas se creditarem do IRRF (Imposto de Renda Retido na Fonte), que é retido sobre alguns rendimentos de fonte brasileira. Por exemplo, o Brasil impõe o IRRF sobre pagamentos quanto a serviços, independentemente se o serviço é prestado no país ou não, basta que a fonte de pagamento seja aqui. E essa é uma regra com a qual os Estados Unidos não concordam. Eles só permitiriam crédito do imposto de renda retido no Brasil se aqui, além da fonte de pagamento, também tivesse a fonte de produção, ou seja, onde o serviço se desenvolvesse fisicamente. De fato, se nós falássemos do sentido oposto, os Estados Unidos só reteriam se fosse nessa situação. O que eles querem é somente dar o crédito a países que sigam essa mesma diretriz. Isso falando do IRRF e considerando o rendimento de serviços como um exemplo. Mas os impactos imediatos vão muito além do IRRF. 

Quais são os outros impactos além do IRRF? 

A legislação americana, quando foi ajustada para ter esses requisitos mais restritivos, também destacou que precisa se certificar de que a legislação do país estrangeiro, que impõe a retenção na fonte ou que tributa o lucro no exterior, seja uma legislação que preveja um imposto sobre a renda nos termos do que os americanos chamam de tributação sobre a renda. Ao fazer isso, aplicam uma série de testes. E são esses testes que causam problema para o Brasil. Alguns dos requisitos nós podemos considerar que cumprimos, como, por exemplo, o tributo a ser calculado a partir do lucro efetivo realizado, parte do faturamento, permitindo reconhecimento de algumas deduções. Só que, nessa questão de deduções, começamos a ter um problema. A nossa legislação do imposto de renda não permite, por exemplo, uma dedução completa de royalties pagos para o exterior. Os royalties no Brasil têm dedução limitada a certos percentuais fixados por regulamento do começo do século passado. Isso em si já gera uma dificuldade. Outro grande obstáculo é que a regulamentação americana exige que a legislação do exterior de imposto de renda tenha regras de preço de transferência que sigam os parâmetros internacionais chamados arm's length. Nossa legislação não segue esses princípios. 

Existe essa discussão no Brasil? 

O governo brasileiro deu início a discussões com a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) para o país se adaptar a essa legislação. Houve um grupo de trabalho com participação da Receita Federal, da OCDE e de indústrias que, em 2019, publicou uma carta conjunta reconhecendo que a nossa regra não segue os padrões arm's length e que, se quisesse seguir os padrões, teria de ser ajustada. Mas, desde julho de 2019, não houve nenhum desenvolvimento nesse sentido. Agora, com a regulamentação americana dizendo que as empresas não poderão ter os tributos brasileiros creditados para fins americanos caso não haja preço de transferência arm's length, começamos a ver a discussão florescer novamente.  

Há impacto em outros tributos do Brasil? 

Ao não cumprir com esses requisitos, o efeito é que nenhum tributo brasileiro nem o IRPJ (Imposto de Renda Pessoa Jurídica) nem a CSLL (Contribuição Social Sobre Lucro Líquido) e nem mesmo o IRFF seriam creditáveis nos Estados Unidos. 

Qual é o efeito prático dessa mudança? 

Aumento de custo de negócios no Brasil. Um grupo americano tem sua subsidiária brasileira sujeita ao imposto de renda brasileiro - que atualmente tem uma alíquota de 34%. Esse mesmo lucro estará sujeito à tributação nos Estados Unidos pelas regras que chamamos de CFC (Controlled Foreign Corporation) ou o GILTI (Global Intangible Low-Taxed Income). Ou seja, essa empresa não tem mais o direito de abater o imposto que foi pago aqui contra o imposto devido lá sobre os lucros daqui. Será gerada uma dupla tributação econômica. Da mesma forma, um rendimento verificado pelo grupo americano de fonte brasileira e sujeito a retenção na fonte no Brasil entrará para a base tributada do grupo nos Estados Unidos, só que sem direito ao crédito do IRRF retido no Brasil.  O custo deste IRRF será provavelmente repassado ao contratante brasileiro.  

Isso pode impactar em investimentos externos no Brasil? 

Sim. Tanto o não creditamento do IRPJ e da CSLL para fins de CFC ou GILTI, quanto do IRRF, geram um aumento do Custo Brasil com potencial de afastar investimentos, sejam novos - pela inviabilidade de um custo tributário adicional - ou antigos, que podem decidir por deixar o país porque se queixam da nossa alta carga tributária.  

O que poderia ser feito para evitar esse risco? 

Mudar a nossa regra de preço de transferência para adotar o arm's length principle como a Receita Federal já tinha dito que teria de ser feito, se certificando que a dedutibilidade dos royalties ficaria condicionada às regras de preços de transferência, sem aplicação dos atuais limitadores de dedutibilidade. Desde 2019 não tínhamos informações sobre em que pé está essa legislação. Por outro lado, em conversas informais recentes, a Receita Federal do Brasil começou a indicar que uma minuta do projeto de lei poderia estar pronta em abril deste ano. Claro que tal minuta ainda estaria sujeita a aprovação do Congresso brasileiro, e também de análise e aprovação públicas (já que não foram ainda objeto de consultas públicas). Mas seria um passo muito importante. Existe uma salvaguarda que também poderia nos tirar dessa situação. A legislação dos Estados Unidos diz que não seria necessário passar pelos testes que mencionei anteriormente, inclusive da adoção de regra arm's length, se houvesse um Acordo para evitar a Dupla Tributação (ADT) firmado com os Estados Unidos. China e Índia, por exemplo, que não estão nessa situação porque eles têm um acordo firmado antes dessa nova regulamentação.  

Por que o Brasil não tem? 

Brasil e EUA já tiveram muitas tratativas focadas na assinatura de um ADT, mas elas emperraram há alguns anos por conta de entendimentos divergentes sobre alguns pontos. Atualmente, acredito que os EUA não aceitariam firmar um ADT com o Brasil se não tivermos as regras arm’s length das quais estamos tratando aqui, e se o Brasil também não aceitasse adotar clausula de arbitragem no ADT e não revisasse as regras de retenção na fonte sobre serviços. Ou seja, inclusive para podermos ter mais chances de recomeçarmos conversas frutíferas com os EUA para assinatura de um ADT, precisaríamos antes rever nossas regras de preços de transferência, adotando o princípio arm’s length – o que, aliás, também é condição para podermos aceder à OCDE. 

Como resolver essa questão? 

Parece ser um conjunto de ações que envolve, inclusive, negociações para a assinatura do tão desejado ADT entre EUA e Brasil, mas que, a meu ver, começa pela discussão acerca da adoção das regras arm’s length para preços de transferência.  Aqui, o risco é que este processo pode levar algum tempo. Mesmo se houvesse uma tramitação desse projeto de forma acelerada no Congresso, poderia haver o risco de ele levar um tempo para entrar em vigor. Poderíamos estar falando de uma situação de dois a três anos expostos aos efeitos negativos dessa alteração dos Estados Unidos. Nestes casos, as empresas precisam tomar medidas focadas na mitigação dos efeitos, por meio do adequado gerenciamento de sua carga tributária efetiva no Brasil.